sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Fragmentos móveis de DNA são abundantes no genoma da cana-de-açúcar

Pesquisa FAPESP - DNA Cigano

Os transposons são fragmentos que, a qualquer momento, duplicam-se ou se destacam de onde estão e se instalam em outras partes do DNA, às vezes junto a genes essenciais ou até em meio à estrutura desses genes. Na investigação desses curiosos personagens moleculares, o grupo da bióloga Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), ataca o genoma da cana-de-açúcar em bloco – um enfoque inovador. E mostra que os movimentos desses fragmentos são menos aleatórios do que se imagina e possivelmente têm papel importante na dinâmica do genoma.

Essa análise em ampla escala tornou-se possível graças aos resultados do Projeto Genoma Cana-de-Açúcar (Sucest), encerrado em 2001, que desvendou sequências do genoma funcional dessa planta essencial na economia brasileira e revelou a existência de 276 elementos de transposição ativos – ou expressos, no jargão da biologia. “Em 2005 demoramos dois meses para convencer o editor da Plant Journal de que o resultado era real, e não uma contaminação”, recorda Marie-Anne. Naquela época, estudos genômicos feitos inteiramente por pesquisadores brasileiros eram incomuns e o resultado surpreendia. Mas a revista acabou publicando o artigo, depois de aceitar o indício de que esses trechos do DNA – também conhecidos como transposons – deveriam ter função, embora ainda não se soubesse qual era.

A partir dos resultados do Sucest e do aumento da capacidade de gerar e analisar enormes volumes de dados, o grupo de Marie-Anne se debruçou de 2009 em diante, em colaboração com colegas do estado de São Paulo, no sequenciamento de mil pedaços seletos do genoma da cana-de-açúcar. Sua equipe hoje parece uma linha de produção de conhecimento científico, e de certa maneira é: uma série de artigos deste ano traz avanços importantes sobre o funcionamento dos transposons.

Aqui você pode ouvir a entrevista com a pesquisadora  Marie-Anne Van Sluys no programa da Pesquisa Brasil (24/08/2012).

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O maior destaque vai para o estudo publicado na BMC Genomics, uma colaboração com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista, entre eles Fabio Nogueira, e da Universidade Estadual de Campinas, a exemplo de Renato Vicentini. De abril a julho o artigo foi visto mais de mil vezes no site da revista e ganhou a etiqueta de altamente acessado. “Fomos os primeiros a mostrar molecularmente que os elementos de transposição têm padrões individualizados”, explica Marie-Anne. Isso significa que, quando um desses fragmentos de DNA se destaca de sua localização de origem, seu destino não é tão aleatório como se pensava. Cada família de transposons tem uma tendência maior a se instalar em determinados cromossomos ou regiões cromossômicas. Ao estabelecer esses padrões, Marie-Anne espera caracterizar como essa interação influencia a ação dos genes.

Muitas das famílias de elementos de transposição se diversificaram há muito tempo, antes mesmo de as plantas com flores se separarem em dois principais grupos: o das monocotiledôneas, como o milho, a cana e o arroz, cujas sementes têm um reservatório de energia (cotilédone); e o das dicotiledôneas, a exemplo dos arbustos e das árvores, com sementes dotadas de dois cotilédones. O grupo de Marie-Anne mapeia essa diversificação dos transposons ao longo do tempo em três espécies de monocotiledôneas de interesse comercial (sorgo, cana e arroz) no artigo de revisão em processo de publicação na Topics in Current Genetics.

A cana-de-açúcar é um caso especial, porque parece ter muito mais elementos de transposição ativos do que as outras plantas estudadas. A bióloga da USP explica isso com base na sua origem híbrida a partir da mistura entre duas espécies silvestres:Saccharum officinarum e S. spontaneum. O resultado da hibridização é uma planta que produz muito mais açúcar e é tolerante a doenças. Para Marie-Anne, o processo de fusão das duas espécies causou um desequilíbrio no funcionamento genético que pode ter alterado a movimentação dos fragmentos móveis de DNA. “O organismo precisa recuperar um compasso único.”

A influência desses elementos pode estar por trás da própria identidade da planta. “Cana, sorgo e milho têm em comum 80% de seus genes; o que os torna diferentes pode ser a regulação genômica”, diz Marie-Anne. Para ela, os elementos de transposição podem estar cumprindo essa função de modular o funcionamento dos genes.

Daqui para a frente, os estudos podem ganhar aplicações práticas e contribuir para o melhoramento dessa planta que produz dois terços do açúcar do mundo e cada vez mais ganha espaço como fonte de combustível renovável. Os elementos de transposição podem ajudar a identificar e controlar o funcionamento de genes como os responsáveis pela resistência à seca, contribuindo para a produção de variedades adaptadas a ambientes mais áridos. Mas o interesse econômico nem é o principal para os geneticistas vegetais, que consideram o funcionamento genético da cana-de-açúcar interessante por si só devido à origem híbrida e às duplicações que fazem com que a espécie tenha um genoma múltiplo, com várias cópias de cada gene. Parece fascinante imaginar que pequenos fragmentos de DNA, que se movimentam de um lado para o outro dentro do núcleo da célula, como se fossem ciganos, podem ter contribuído para que a cana-de-açúcar não fosse apenas mais uma espécie entre muitos tipos de capim.


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